sábado, 1 de julho de 2017

A hospitalidade de Kant em debate com Derrida e Levinas

A hospitalidade de Kant em debate com Derrida e Levinas

A hospitalidade pode ser compreendida como o direito de ir e vir de alguém, ou seja, uma experiência pautada pelo encontro com o outro (estranho). Ser hospitaleiro significa hospedar; acolher àquele que não é de nosso círculo familiar íntimo. A acolhida do outro, seria a hospitalidade de modo a conduzir cada um a refletir e a realizar determinadas condutas. 
Segundo Kant, a experiência da hospitalidade deve ser fundada na razão pura como dever moral e não como um cálculo de universalização nem de risco. Seria o dever do imperativo categórico enquanto modo de vida ético.
O imperativo categórico de Kant, como princípio ético universal encaminha a humanidade ao progresso. Para o filósofo, o comum é a lei racional, ou seja a lei que nós fazemos do exercício da nossa autonomia. Nas regras do agir considerados deveres éticos, deve-se tratar bem os hóspedes no sentido de alcançar uma vida virtuosa.  O agir implica no significado de hospitalidade, um agir motivado racionalmente.

“Age sempre de tal modo que o teu comportamento possa vir a ser princípio de uma lei universal.” Kant

O estrangeiro de Kant não é absolutamente outro, mas um cidadão do mundo independentemente qual seja sua origem territorial, que deverá ser tratado como pessoa como fim em si mesmo e não apenas como meio. A língua da hospitalidade é a língua da razão prática.

Segundo Derrida, o hospedeiro de Kant instala uma relação com aquele que está na sua casa segundo o direito. A relação entre hóspede e hospedeiro é segundo a lei moral.  A proposta de Derrida para o conceito de hospitalidade sob o prisma da desconstrução, se traduz na abertura política e jurídica, para que se avance numa nova responsabilidade quanto ao tema.
Derrida pensa na ética como uma forma de hospitalidade pura, no acolher as diferenças do outro  e este respeito pela diferença do outro ele define como a condição última da hospitalidade. Para o filósofo a hospitalidade é um dever ético, uma obrigação única sem atenuantes nem condicionantes. Dessa forma, a hospitalidade pura não obriga o hóspede a adaptar-se plenamente a cultura, sendo aberta ao acolhimento do estranho.
Há um confronto entre as ideias de Derrida e os argumentos de Kant que permite medir a dimensão do alcance de ambos no tocante da compreensão das condições de possibilidade de uma experiência de hospitalidade. Utilizando os termos de Derrida podemos dizer que kant pede documentação, a hospitalidade kantiniana tem limites, mas está inserida dentro de uma reflexão mais ampla: por um lado no âmbito da legislação da liberdade interna  e do respeito ao imperativo categórico; por outro lado, no âmbito da legislação da liberdade  externa  e do respeito a lei jurídica. No que diz respeito  a hospitalidade,  o ético e o jurídico  podem se articular de modo consistente, o que sustentaria a exequibilidade e a efetividade do dever de hospitalidade numa experiência prática.
Levinas propôs correr o risco, afirmando que o outro é meu semelhante, propondo uma relação assimétrica e não recíproca. Segundo Levinas, não seria uma culpa moral, mas uma responsabilidade ética. A hospitalidade é antes de tudo um problema ético-teológico e não jurídico, é um dever ético e não normativo.  Para ele a hospitalidade nos constitui no nosso ser e não podemos ser senão hospitaleiros.
Segundo Levinas,  na antiguidade o cerne de todas as atenções estava no ser, mas na idade média substitui-se a questão do ser pelo eu,  e esse termo prevalece até os dias atuais, numa ótica da valorização da diversidade entendida como abertura para o outro. O filósofo adverte  da importância de se pensar o trajeto da filosofia em direção ao outro. Levinas entende que o outro (estrangeiro) constituí-me enquanto ser, assim há uma responsabilidade minha com o estrangeiro. E a ética está centrada no desapego do eu dirigindo o olhar para o outro, pois se outro existe ele me constitui como ser existente.
Levinas pensou ir além com uma hospitalidade radical, falando não apenas de direito e sim de ética. Diante do outro como radicalmente outro, então recuou em seu mandado ético e propôs noções de achegado.
A ética da hospitalidade é um tema que foi examinado por alguns filósofos e ainda hoje incita debates quanto à prática efetiva do mesmo, por ser um tema desafiador quanto ao posicionamento ético do indivíduo e das nações e, provocar tensão quanto à postura perante o outro, aquele que apesar de semelhante causa estranhamento.
   Por definição, “o termo Hospitalidade refere ao ato de acolher, de receber um hóspede em casa. Ser hospitaleiro significa hospedar bem àquele que não é da nossa família, do nosso círculo familiar mais íntimo, mais próximo. [...] Na atualidade, um sentido múltiplo, ou melhor ainda, um leque de sentidos do termo hospitalidade considera aquilo que diz respeito à ação gratuita de acolher indivíduos vindos do estrangeiro ou grupos migratórios e também àquilo que refere ao turismo e à hotelaria. Hospitalidade então pode sugerir dádiva e também gestão em relação com aquele que não é da casa”. Portanto, “é habitual se deparar com a figura do homem gentil e hospitaleiro que prepara a chegada do outro e o recebe. Cortesia, respeito e boas maneiras são palavras que costumam estar associadas à hospitalidade. Nessa experiência de hospitalidade o respeito à diferença, o reconhecimento do outro como diferente, o respeito à diversidade, à alteridade parecem estar na base do sentido do termo em questão”. Porém, quando se trata das condições de possibilidade de uma experiência de hospitalidade, surge um paradoxo quanto ao conceito e a efetividade prática refletida no desafio do “ato do encontro com o estranho, com o outro e com os conflitos que são conseqüentes”. “A hospitalidade defronta-nos com o desafio da aceitação do desconhecido, pois acolher o outro é correr um risco. O estranho pode representar uma ameaça à segurança de quem o acolhe, assim como o próprio estrangeiro, ao ser recebido, sofre com a ameaça de ser transformado no mesmo, de não ter preservada a sua cultura, seus laços de pertencimento, sua identidade e sua diferença”.
Somos habitados pelo estrangeiro em asilo ou em hospitalidade. Esse reconhecimento do outro e a experiência de hospitalidade nos leva a refletir sobre as políticas da diferença. O modo de reconhecimento determina a conduta que teremos em relação com o outro.

Referências:

PEREZ, Daniel Omar; A hospitalidade de kant em debate com Derrida e Levinas – Ética 3. SEAD – UFES: Vitória, 2017.

A ética da hospitalidade no acolhimento do outro / Sandra Patricia Eder Comandulli. – 2016. Dissertação (Mestrado) – Universidade de Caxias do Sul, Programa de Pós-Graduação em Filosofia, 2016. Orientador: Prof. Dr.André